sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Maldita memória!

As mãos tremem. Chega a dar desequilíbrio. Ao fazer a barba hoje de manhã, reparei na água que corria na pia rumo ao ralo, uma pequena e delicada linha de sangue. Cortei-me perto do queixo. Depois de meia hora de água quente caindo pelo corpo, de braços apoiados na parede do banheiro, e soluços abafados pelos azulejos, se cortar não dói tanto. A dor interna é sempre maior. Colocar a mão na consciência e perceber que tempo perdido não volta. Limpei o rosto, a pia, vesti o roupão e fui escolher a roupa.
Uma camisa de malha, uma calça jeans e tênis preto. Pronto. Nem mais luxo que ontem, nem menos que amanhã. A mesma trajetória de sempre, evitar os locais em que tive história. E fica difícil porque foram tantas histórias e tantos lugares.
Troquei de padaria, de jornal, de perfume, mas não de coração e de memória. E numa dessas brisas entre sete e oito horas da manhã, sempre consigo sentir o cheiro da flor que ela mais gostava. Converso com o velho do banco, que sempre está sentado ali, jogando milho pras pragas urbanas que são as pombas, passo perto da igreja, escuto o sino, e vejo que nem sei o nome do velho que conheço há oito meses. Continuo meu caminho.
Saber que no trabalho, tenho que esculpir um sorriso no rosto, sem a matéria prima “felicidade”, e que tenho que falar, falar, falar sem parar pra segurar a atenção dos meus clientes, me faz tremer ainda mais. Já tomo café sem adoçante pra assimilar o amargo com o da minha rotina. E de repente, uma vontade de abrir a janela e voar, sem me preocupar com tudo que me cerca e me força a lembrança.
Almoçar. Tornou-se um ato tão comum, que tudo que venha a repousar dentro do prato, tem o mesmo gosto, gosto de “nó” na garganta. Entra na fila, pesa, senta, come, levanta sorri para a menina do caixa, paga e volta pro serviço.
Às seis horas, volto pra casa, abro a geladeira, tomo uma latinha de cerveja faço carinho na cachorra, troco de roupa e saio novamente, pra sentar em algum lugar, tomar mais uma cerveja e olhar pro céu, o mesmo céu que cobre o meu mundo e que continua cobrindo o dela, e o mais interessante: eu estou lembrando!
Nesse esforço constante de largar a memória, eu sequer tenho consciência de que é mais fácil apagar o mundo inteiro, que apagar algo tão aterrador, marcante, que vai consumindo a alma, focalizando o passado e destruindo externamente, muita coisa além do meu rosto cortado pela navalha, meu gosto pela comida ou a história dos lugares.
E se por ventura, me esqueço algumas horas do passado, todo santo dia, na frente do espelho, a mão volta a tremer, e o olhar que me encara, é a maior razão de eu me lembrar de tudo. Sem essa memória, talvez nem seja eu...

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